Capítulo 3
UM POUCO DA PERFEIÇÃO DA NATUREZA
Vamos nos afastar um pouco da História para fazer um rápido passeio por outro tema.
Chama a atenção, em vários aspectos, a perfeição da mãe natureza. Em quase tudo que é natural, a gente pode perceber detalhes que mostram algo de extraordinariamente bem feito.
A regularidade das diversas fases da lua com a correspondente mudança das marés nos oceanos; as estações do ano, com suas diferenças bem marcadas, principalmente no hemisfério norte (aliás, falar em hemisfério norte me faz lembrar minha cara de imbecil, durante minha especialização médica na França, olhando para o céu, em uma noite bem estrelada, procurando o Cruzeiro do Sul. Já estava me contentando até com as Três Marias, quando o pai da amiga que eu visitava, percebendo minha angústia, me tranquilizou, esclarecendo que estas constelações não haviam desaparecido, só que estavam do outro lado da Terra. Fiquei me culpando por ter faltado aquela aula. Quando ele ia me mostrar a Ursa Menor, já estava perguntando aonde era o toilete, passado que estava, por aquele mico que havia pago. Vou me reservar o direito de não revelar o desfecho daquela noite, tendo que usar um talher que nunca havia visto antes em minha vida, para comer escargot, um caracol que só conhecia de desenho animado); o crescimento de uma árvore gigantesca, a partir de uma diminuta semente que, em si guarda toda a informação do que esta será no futuro; os milhões de estrelas e planetas que existem harmonicamente no universo; a tonalidade das cores das flores, etc.
A cada dia mais e mais constatações científicas evocam uma perfeição que, a meu ver, só pode ser obra de uma mente, de uma força, de uma energia extremamente superior. Reproduções de aspectos da natureza só podem ser alcançados mediante os cálculos de computadores sofisticadíssimos e, outras ainda não puderam nem mesmo ser entendidas, tal a sua perfeição. Diz-se que o cérebro humano tem uma capacidade potencial, i.e., não utilizada pelos seres humanos, de aproximadamente uns 95 %, tal é a intrincada engenharia que o criou.
ilustração de Kamil Yavuz -© TurquiaVoltando ao meu período de vida na França, em 1979, trago para vocês, alguns de meus maiores espantos nas primeiras semanas de choque cultural:
Carro da faxineira - a faxineira que arrumava os cômodos dos médicos residentes tinha um carro Renault 4, ano 1978. Este carro havia sido comprado por ela, com o seu salário de faxineira de cômodos de médicos residentes. Não foi por raspadinha, lotomania, clonagem, presente de marido, herança ou prêmio de consolação como participante derrotada no Big Brother 72.
Sem buracos - em nenhuma das ruas, ruelas, avenidas, estradas, ou "ôtorútes", via um buraco se quer, nem mesmo uma irregularidade no chão. Nas auto-estradas havia, inclusive, uma pista para que a "tiurma" dos Porches pudesse trafegar legalmente acima de 220km / hora.
Ué, como assim, não tem vestibular ? - Fazendo amizades com os acadêmicos de medicina, descobri que nenhum deles havia feito vestibular para entrar na faculdade. Por mais que tentasse explicar a eles como era por aqui, tinham extrema dificuldade de entender as minhas explicações. E, ainda por cima, achavam que, pela forma como eu dizia que era, só os filhos da classe mais rica conseguiriam as melhores universidades, que ainda por cima eram as públicas.
Rio é em Buenos Aires ? - Constatei que a famosa piadinha de que a cidade do Rio de Janeiro fica em Buenos Aires ( ou seria o contrário ? ) era verdadeira. Eles tinham, à época, extrema dificuldade para situar nosso país geograficamente. Algo como vocês responderem agora, neste instante, qual é a capital da Tanzânia.
Brasileiro inventor do avião ? - Espantado por achar-me numa nação aonde faxineira tinha carro, os carros não conheciam buracos, pobres tinham o mesmo poder de estudar medicina que os ricos e querendo marcar posição sobre o poderio brasileiro, na primeira oportunidade que tive lembrei-os, todo garboso, de quem havia sido o inventor do avião, nosso Santos Dumont. Fui motivo de gargalhadas homéricas, de segurar a barriga. Gozação, quase até acabar o estágio, por dois anos seguidos. Depois disto, sempre que ouço falar em Santos Dumont, me dá uma coceira na orelha esquerda. Onde terá falhado o nosso marketing?
Saiba mais sobre a vida de Alberto Santos Dumont, Revista Época, 12/set/2004
Banca de jornal sem jornaleiro - outro grande motivo de espanto foi perceber que os jornais diários eram colocados numas caixinhas envidraçadas, posicionadas estrategicamente nas esquinas das ruas. As pessoas colocavam moedas, no valor exato do jornal que queriam, abriam a porta das caixinhas, que não tinham trava alguma, e o pegavam. Durante algumas semanas, sempre que passava em frente a elas, eu pensava qual seria o seu destino se vivessem onde eu nascera. Eu pensava no destino dos jornais, das moedinhas e da própria caixinha...
Um lixinho inofensivo incomodava tanto porquê? - Um dos maiores choques culturais foi ver velhinhos alsacianos abaixarem-se para pegar pedacinhos de papéis que eu, e todos os outros cucarachos latinos e árabes com quem eu andava, jogávamos no chão. Eles pegavam os lixinhos e, quando não tinham lixeiras próximas, colocavam a sujeirada nos próprios bolsos para desfazerem-se depois em local apropriado. E, o mais humilhante era nunca termos recebido quaisquer observações sobre a nossa precaríssima educação. Eles pegavam o lixo e seguiam adiante, vida que seguia.
E multa de trânsito? - Com pouco mais de um mês de estada nas oropas, com o meu francês começando a diferenciar-se do meu chinês, fui pego por um guarda de trânsito dirigindo o carro de uma amiga numa bela contra-mão, numa rua que conhecia pouquíssimo. Munido da melhor dicção francesa que consegui, fazendo biquinho como Catherine Deneuve, perguntei à autoridade como poderíamos fazer para morrer aquela estória por ali mesmo... Quase fui preso.
Parada nas faixas? - Como tinha um colega de infância morando numa cidade vizinha a Estrasburgo, só que na Suíça, com frequência passava finais de semana por lá. Nesta pequena cidade, Basiléia, sempre que alguém colocava o pé nas faixas de trânsito, qualquer carro parava imediatamente, permitindo pacientemente que o indivíduo cruzasse a rua sem sobresaltos. Não era necessário sinal de trânsito, quardas sedentos com bloquinhos brancos na mão ou quebra-molas (invenção maior do subdesenvolvimentismo). Nem sob tortura vou revelar os nomes dos meus colegas de especialização que colocavam os pés nas faixas só para verem os "otários" parando seus carros à toa.
Lixeiras para pilhas e garrafas? - Outra estranheza foi acompanhar meu anfitrião suiço por ruelas distantes, até encontrarmos depósitos de garrafas e depósitos de pilhas usadas. Esse lixo não era colocado junto com o restante. Meu amigo perdia um tempo precioso para depositá-lo num local determinado.
Ué, como assim quanto custa a escola dos meus filhos? - Bem, tenho encontrado muitas vezes o meu anfitrião suiço depois de meu regresso de Estrasburgo. Curiosamente, sempre no Brasil, mais precisamente no Rio de Janeiro. Num de nossos últimos encontros, pergunto-lhe quanto custa a escola de seus filhos na Basiléia. Como a música ambiente estava alta, repeti o questionamento, imaginando que ele não o tivesse ouvido, e não que não o tivesse compreendido. Acabei por quase soletrar-lhe a questão: quan-to vo-cê pa-ga pe-la es-co-la dos se-us fi-lhos?? Recuperando-se do espanto, ele me informa que, para que os seus filhos estudem das 7 às 15h, ele não gasta rigorosamente nada, nem com material escolar. Acho que, apenas para acabar de me sacanear, ele completa que lá na Basiléia, Suiça, só vai para a escola particular quem tira notas ruins na escola pública.
Bom, o tema do nosso trabalho é o tabaco. Não creio que vocês estejam interessados em mais espantos de viagens e pós-viagens...
Cordel do Santini - capítulo 3
Doutor, o vosso fascínio / ante tanta perfeição / entre nossa lua e estrelas / tem uma explicação / é que de fato não há / fumaça rondando lá / como aqui em nosso chão
Mas tenhamos confiança / confiar é ter certeza / de que a mãe natureza / traz sempre ar de esperança