Capítulo 19
TRÊS CENAS DRAMÁTICAS QUE NUNCA
SE APAGARAM DA MINHA MENTE
(pule o capítulo aquele que for impressionável)
Existem certas situações na vida de qualquer um de nós, em que um acontecimento fica para sempre gravado na memória. Vira e mexe, eles voltam.
Acredito que todos os médicos tenham uma ou mais cenas que viveram em suas vidas profissionais que deixaram marca.
Eu tenho três, sendo que a primeira nada tem a ver com cigarros. Estava de plantão, ainda acadêmico de medicina, no Hospital Salgado Filho (RJ), quando chegou um rapaz, já falecido, carregado por familiares. Ele havia acabado de ganhar uma motocicleta nova, de 1000 cilindradas, muito mais potente do que qualquer outra que já tivera antes. Logo que recebeu a moto, foi se exibir para a noiva, que morava a poucas quadras de distância. Toda a família da noiva se debruçou na sacada do sobrado para assistir a sua estréia numa "mil cilindradas". O garoto empinou a moto em excesso e, ela acabou tombando sobre ele, matando-o na hora. O desespero do pai, que tinha sido quem lhe dera a motocicleta, foi algo que jamais esquecerei em minha vida.
A segunda cena está relacionada com cigarros, e também está arquivada em algum lugar do meu cérebro. De vez em quando a vejo. Volto um pouquinho no tempo, para situar vocês melhor: tratava há alguns anos de um paciente que tinha um enfisema pulmonar muito avançado. Passei com ele por várias internações e, o via regularmente em consultório. A cada ano, seu estado era mais grave e, não obstante, não conseguia de forma alguma abandonar o cigarro, o que em muito prejudicava o tratamento. Numa manhã de domingo, sou chamado por seu filho para constatar o que lhe parecia a morte de seu pai. Munido de um atestado de óbito (aquele formulário que os médicos usam para declarar do que faleceu o paciente), dirigi-me à residência do paciente. Lá chegando me deparei com a cena tétrica, do paciente (que havia sido encontrado morto, por seu motorista, sentado no vaso sanitário) rodeado, sem qualquer exagero, por mais ou menos umas duzentas guimbas de cigarros queimadas. Todo o seu quarto e o banheiro, aonde foi encontrado, estava coalhado de guimbas e cinzas. Pude pela primeira vez atestar um caso de "overdose" de nicotina. Pela inclinação do paciente, desapegado da vida como estava, me pergunto se não provocou intencionalmente a sua própria morte. Ele, pessoalmente, acendeu mais de duzentos cigarros seguidos.
A terceira cena é bem recente, de junho de 1999, e me chocou por todo o contexto que inclui, uma doença evitável (bastando não fumar), uma criança pequena e o curso rápido entre o diagnóstico e a morte. Um rapaz americano, de nome Bryan, com apenas 33 anos, descobre ter Câncer de pulmão, em Abril de 1999 e, em 3 de Junho deste mesmo ano, vira história. A história do Tabagismo. Munido das últimas forças restantes, pede que seja fotografado e que seu holocausto possa ser mostrado aos jovens, como um exemplo, do que deve ser evitado a qualquer custo. A versão completa do acontecido foi publicada no jornal local, Saint Petersburg Times:
http://www.sptimes.com/News/61599/Floridian/He_wanted_you_to_know.shtml
"Bryan Curtis começou a fumar aos 13 anos, jamais imaginando que, 20 anos mais tarde, isto iria matá-lo e deixar uma esposa e uma criança sozinhas. Em suas últimas semanas, ele expôs-se como uma mensagem para os jovens", diz a matéria da jornalista Sue Landry, do St. Petersburg Times, entitulada "ELE QUERIA QUE VOCÊ SOUBESSE".
Bryan Lee Curtis, 33 anos, aparentemente saudável, em 29/Março/1999
Bryan Lee Curtis, 2 meses depois, em 03/06/99, no dia de sua morte, causada pelo Câncer de Pulmão (90% destes cânceres são causados pelo tabagismo)
(a publicação destas fotos foi o seu último pedido)Enquanto isto, as propagandas de cigarros apregoam: "No Limits (Sem Limites)", "Venha Para o Mundo de Malboro", "Um Raro Prazer", etc., etc. e etc.
As fotos do Bryan me fizeram pensar numa notícia que li (O Globo, 5/10/99): "Boa parte dos jovens americanos associa o cigarro com a boa forma, diz o estudo da Escola de Saúde Pública de Harvard, EUA. Segundo a matéria, entre as 16 mil crianças pesquisadas, de 9 a 14 anos, tanto meninas quanto meninos acreditam que o cigarro tem o poder de controlar o peso. Muitos disseram ter começado a fumar para tentar controlar o peso ou achando que poderiam emagrecer se fumassem". Bom, pelas fotos do Bryan, vemos que realmente o fumo faz emagrecer.
Apesar de ser especialista em doenças pulmonares, a história e a imagem do Bryan me tocaram profundamente. Se afetou a mim, que vejo casos semelhantes quase todos os dias, fiquei imaginando como teria sido para a jornalista, a Sue Landry, que fez a matéria original, que correu o mundo. Como fora para ela, que nem médica era? Acabei por fazer contato com o seu jornal e consegui comunicar-me com a jornalista. Hoje, estamos até meio amigos cibernéticos. Reproduzo abaixo, trechos de e-mails que recebi da Sue, contando a sua experiência com o desejo do Bryan:
"A História do Bryan Curtis me afetou bastante. Eu já tinha aversão às companhias de tabaco antes de ter feito a matéria. Eu havia sido fumante, porém, abandonara o fumo há 7 anos. A minha mãe fumara durante a minha vida inteira e teve Câncer de pulmão aos 58 anos".
"Eu tenho mantido contato com a mãe do Bryan Curtis depois de sua partida. Algumas pessoas querem que ela dê palestras para os jovens. Outras querem apenas ajudar a família. A mãe do Bryan, Louise Curtis, está tendo um momento difícil para lidar com a morte do filho, porém, ela se sente bem em saber que o objetivo dele está sendo alcançado, mesmo sendo após a sua morte. Ela se diz muito gratificada por ouvir que o artigo alcançou tantas pessoas e que está convencendo algumas destas a abandonarem o fumo. Isto a está ajudando a lidar melhor com a perda do seu filho".
"Eu estou contente em saber sobre o impacto que a história teve no Brasil. Fiquei impressionada de como a história correu o globo tão rapidamente. Eu estou no jornalismo há 15 anos e, creio que este artigo, sobre a morte do Bryan, teve mais impacto do que qualquer coisa que eu já tenha escrito".
Assina: Sue Landry (e-mail: lunita@aol.com) 01/ago/1999.
A Sue Landry, mesmo tendo sido o fumo o principal fator de risco relacionado à morte do Bryan Curtis, registra em sua matéria que, após o enterro, ainda à beira do túmulo, diversos amigos e parentes acenderam os seus cigarros:
Tabaco após enterrar o amigo que morreu de tabaco...
Lauren, from COST
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