A VINGANÇA DE GAIA
O cientista inglês,
James Lovelock, que considera a Terra um organismo
vivo, diz que só a energia nuclear pode adiar o desastre
Diogo Schelp, páginas amarelas da revista Veja, 25/out/06
O inglês James Lovelock é um cientista com contribuições a áreas tão distintas do conhecimento que é difícil classificá-lo em uma única especialidade. É também um dos mais controvertidos. Sucesso entre os ambientalistas, sua criação mais conhecida, a Hipótese Gaia, é criticada pelos cientistas. Segundo essa teoria, que Lovelock desenvolveu quando trabalhava para a Nasa, nos anos 60, a Terra é um organismo dotado da capacidade de se manter saudável e tem compromisso com todas as formas de vida – e não necessariamente com apenas uma delas, o homem. Lovelock é o inventor do aparelho que permitiu detectar o acúmulo do pesticida DDT nos seres vivos, razão pela qual se interrompeu o uso da substância. O aparelho também ajudou a identificar o CFC, gás utilizado em aerossóis, como o responsável pela destruição da camada de ozônio, o que levou a sua proibição. Lovelock acredita que o equilíbrio natural foi rompido pelo aquecimento global, tese desenvolvida no livro A Vingança de Gaia, publicado neste ano em seu país. O cientista concedeu esta entrevista a VEJA de sua casa em Devon, na Inglaterra, onde, aos 87 anos, faz pesquisas em um laboratório particular.
Veja –
Quando o aquecimento global chegará a um ponto sem volta?
Lovelock – Já passamos
desse ponto há muito tempo. Os efeitos visíveis da mudança climática, no
entanto, só agora estão aparecendo para a maioria das pessoas. Pelas minhas
estimativas, a situação se tornará insuportável antes mesmo da metade do século,
lá pelo ano 2040.
Veja –
O que o faz pensar que já não há mais volta?
Lovelock – Por modelos
matemáticos, descobre-se que o clima está a ponto de fazer um salto abrupto para
um novo estágio de aquecimento. Mudanças geológicas normalmente levam milhares
de anos para acontecer. As transformações atuais estão ocorrendo em intervalos
de poucos anos. É um erro acreditar que podemos evitar o fenômeno apenas
reduzindo a queima de combustíveis fósseis. O maior vilão do aquecimento é o uso
de uma grande porção do planeta para produzir comida. As áreas de cultivo e de
criação de gado ocupam o lugar da cobertura florestal que antes tinha a tarefa
de regular o clima, mantendo a Terra em uma temperatura confortável. Essa
substituição serviu para alimentar o crescimento populacional. Se houvesse 1
bilhão de pessoas no mundo, e não 6 bilhões, como temos hoje, a situação seria
outra. Agora não há mais volta.
Veja –
Um estudo recente concluiu que a temperatura média da
Terra vai aumentar 2 graus até o fim do século. O senhor concorda?
Lovelock – Os cientistas
que fazem essas previsões baixas estudam a atmosfera como se ela fosse algo
inerte. É um cálculo estanque, baseado na crença de que o aquecimento é
diretamente proporcional à quantidade de gás carbônico jogada na atmosfera. A
realidade é bem mais complexa. Todos os seres vivos do planeta reagem às
mudanças que provocamos e as amplificam. Há previsões mais confiáveis de um
aumento de até 6 graus até o fim do século. Essa vai ser a média global. Em
algumas regiões, o aumento de temperatura será ainda maior.
Veja –
O senhor vê o aquecimento global como a comprovação de que
sua teoria está certa?
Lovelock – O aquecimento
global pode ser analisado com base na Hipótese Gaia, e, por isso, muitos
cientistas agora estão se vendo obrigados a aceitar minha teoria. Ela diz que
todos os organismos, agindo em conjunto, formam um sistema ativo cujo objetivo é
manter a Terra habitável. Nos oceanos, algumas algas utilizam o carbono do ar no
seu crescimento e liberam outros gases que formam nuvens sobre a atmosfera. As
nuvens ajudam a defletir os raios solares. Sem elas, a Terra seria um lugar
muito mais quente e seco. Essas algas estão morrendo com o aumento da
temperatura dos oceanos. Esse é apenas um exemplo de como a capacidade
auto-reguladora do sistema Gaia está sendo rompida.
Veja –
O aquecimento global vai levar a uma nova fase da seleção
natural da espécie humana?
Lovelock – Sim. Pela
Hipótese Gaia, qualquer organismo que afeta o ambiente de maneira negativa
acabará por ser eliminado. Como o aquecimento global foi provocado pelo homem,
está claro que corremos o risco de ser extintos. Até o fim do século, é provável
que cerca de 80% da população humana desapareça. Os 20% restantes vão viver no
Ártico e em alguns poucos oásis em outros continentes, onde as temperaturas
forem mais baixas e houver um pouco de chuva. Na América Latina, por exemplo,
esses refúgios vão se concentrar na Cordilheira dos Andes e em outros lugares
altos. O Canadá, a Sibéria, o Japão, a Noruega e a Suécia provavelmente
continuarão habitáveis. A maioria das regiões tropicais, incluindo praticamente
todo o território brasileiro, será demasiadamente quente e seca para ser
habitada. O mesmo ocorrerá na maior parte dos Estados Unidos, da China, da
Austrália e da Europa. Não será um mundo agradável. As condições de
sobrevivência no futuro serão muito difíceis. Essa é a vingança de Gaia, uma
expressão que uso apenas como metáfora, não como argumento científico.
Veja –
O que vai acontecer com quem permanecer nesses lugares?
Lovelock – A maioria vai
morrer de fome. Não é só uma questão de aumento de temperatura. Com a mudança
climática, será impossível cultivar alimentos ou criar animais de abate, porque
simplesmente não haverá chuva ou água para a irrigação. O Rio Ganges, na Índia,
por exemplo, está tendo seu volume reduzido e logo irá desaparecer. Quem
conseguir migrar para os poucos oásis que sobrarem ou para as regiões mais frias
ao norte do globo viverá em condições semelhantes às de muitos africanos hoje:
haverá escassez de comida e pouca água. As guerras do futuro serão uma
conseqüência do aquecimento global. Quando a China se tornar inabitável, seus
moradores não vão simplesmente sentar e esperar a morte. Eles vão migrar para a
Rússia. Há espaço para essas pessoas na Sibéria, mas duvido que essa migração
aconteça pacificamente.
Veja –
Será possível se recuperar dessa situação?
Lovelock – A Terra vai
se recuperar. Há 55 milhões de anos ocorreu um evento muito parecido com o que
está acontecendo agora. Naquele tempo, houve uma emissão acidental de uma
quantidade de dióxido de carbono equivalente à que está sendo produzida hoje
pela ação humana. A temperatura da Terra elevou-se em 8 graus nas regiões
temperadas e em 5 graus nos trópicos. Os seres vivos migraram para as regiões
polares e ficaram centenas de milhares de anos por lá. Quando a temperatura
global voltou a cair, eles migraram de volta. O sistema Gaia, portanto, não está
ameaçado, mas vai levar 200 000 anos para voltar a ser como é. Para nós,
humanos, isso é muito tempo.
Veja –
Muitos cientistas estão preocupados com a diminuição da
biodiversidade. O senhor também está?
Lovelock – Não. A perda
de biodiversidade é apenas um sintoma das mudanças climáticas. Os biólogos se
preocupam com isso porque eles adoram colecionar espécies. Na verdade, os
ecossistemas mais saudáveis são aqueles com pouca biodiversidade. Muito mais
grave é o risco de quase extinção enfrentado pela humanidade.
Veja –
Não há nada que se possa fazer?
Lovelock – A única opção
é substituir as fontes de energia mais comuns por usinas nucleares, mais limpas
do que hidrelétricas ou termoelétricas. O gás carbônico vai nos matar se não
fizermos nada a respeito. As pessoas têm medo do lixo atômico, mas isso é um
mito. A quantidade de resíduos produzida pelas usinas nucleares é irrisória e
não causa grandes problemas ambientais. A energia nuclear, no entanto, não é uma
solução, e sim uma medida para ganharmos tempo. A roda do aquecimento global já
está em movimento, e não há como freá-la.
Veja –
É mais fácil se livrar de lixo atômico do que de gás
carbônico?
Lovelock – Infinitamente
mais. Cem gramas de urânio equivalem a 200 toneladas de carvão, em termos de
energia gerada. Com 100 gramas de urânio não se produzem mais do que 100 gramas
de lixo atômico, enquanto a poluição emitida pela queima de 200 toneladas de
carvão é de 600 toneladas de dióxido de carbono. Entre 100 gramas e 600
toneladas de resíduos, é óbvio que o carbono é um problema maior.
Veja –
E quanto aos riscos de acidentes nucleares, como o da
usina de Chernobyl, em 1986?
Lovelock – Chernobyl é
uma grande mentira. A ONU enviou três equipes de cientistas a Chernobyl para ver
quantas pessoas realmente morreram em conseqüência do acidente. A resposta é 56
mortos, no máximo. Foi o tipo de acidente nuclear que apenas podia acontecer
naqueles velhos tempos da União Soviética, em que as usinas eram administradas
de maneira irresponsável. As estatísticas das usinas nucleares ao redor do mundo
são impressionantes. Elas produzem energia com uma segurança maior do que
qualquer outra indústria energética. O perigo de acidentes não é nada comparado
aos efeitos do aquecimento global. As pessoas estão perdendo o contato com o
mundo natural e por isso há saudosismo, um desejo inconsciente de volta à
natureza. A ciência e a tecnologia passaram a ser rejeitadas e classificadas
como ruins para o ambiente. É o que acontece com as plantas geneticamente
modificadas e com a energia atômica. Vivemos em uma sociedade hipocondríaca.
Veja –
No Brasil, a maioria dos carros novos funciona com álcool
combustível. O biocombustível é uma boa forma de reduzir a emissão de gases do
efeito estufa?
Lovelock – Essa
provavelmente é das coisas menos sábias a fazer. Para produzir a cana-de-açúcar
para o biocombustível, é preciso ocupar o espaço dedicado à produção de
alimentos ou derrubar florestas, que ajudam a regular o clima. Isso é
contraprodutivo. É mais inteligente usar a energia nuclear para produzir
hidrogênio como combustível para os carros. Alguns anos atrás, muitos cientistas
achavam que o biocombustível era o caminho certo a seguir. Agora que sabemos
quão sério é o problema do aquecimento global, percebemos que essa não é a
melhor solução. Nós, cientistas, devemos pedir desculpas ao povo brasileiro.
Veja –
Qual sua opinião sobre o conceito de desenvolvimento
sustentado, pelo qual se explora o ambiente sem lhe provocar danos?
Lovelock – Acho uma
idéia adorável. Se a tivéssemos aplicado 200 anos atrás, quando havia apenas 1
bilhão de pessoas no mundo, talvez não estivéssemos na situação em que estamos
hoje. Agora é tarde demais. Não há mais espaço para nenhum tipo de
desenvolvimento. A humanidade tem de regredir. Em algumas décadas, quem
conseguir se mudar para regiões melhores, com temperaturas mais amenas, terá uma
chance de sobreviver.
Veja –
Qual sua opinião sobre a proposta de colocar um escudo
solar em órbita, para devolver ao espaço os raios de sol?
Lovelock – Não é uma má
idéia. Esse escudo ficaria entre o Sol e a Terra e poderia desviar 3% dos raios
solares e, dessa forma, reduzir o calor na atmosfera. Trata-se de uma medida
relativamente rápida de ser implementada e custaria menos que a Estação Espacial
Internacional. O escudo solar poderia nos dar um pouco mais de tempo, mas não
seria a cura para o problema do aquecimento global.
Veja –
A destruição da Amazônia é a maior vilã do aquecimento
global?
Lovelock – Não. O
sudeste da Ásia está sofrendo uma destruição comparável à da Amazônia. A
Indonésia tem provocado tanto dano às florestas quanto o Brasil. Uma medição
feita no passado mostrou que as queimadas indonésias liberaram 40% de todo o gás
carbônico produzido no mundo em um ano. Os brasileiros não devem se sentir os
únicos culpados pelo desastre que estamos prestes a vivenciar. Temos todos uma
parcela igual de culpa.
Veja –
Por que a ciência levou tanto tempo para perceber a
gravidade da mudança climática?
Lovelock – A comunidade
científica estava muito engajada em um outro problema: a destruição da camada de
ozônio. Era uma questão fácil de resolver, porque os produtos industriais que
estavam provocando o buraco na camada podiam ser substituídos por outros,
inofensivos. Só em 2001, em uma convenção em Amsterdã, na Holanda, os
pesquisadores concordaram que o aquecimento é um fenômeno global. Naquele ano,
eles finalmente aceitaram a tese de que a Terra é um sistema que se auto-regula,
indiretamente concordando com a minha Hipótese Gaia.
Veja – Alguns cientistas dizem que
suas opiniões são apocalípticas e por isso não podem ser levadas a sério. O que
o senhor diz a eles?
Lovelock – Não há nenhum
dado no meu livro diferente daqueles contidos no relatório do Painel
Intergovernamental de Mudanças Climáticas, da ONU. A diferença é que eu
apresentei os fatos de uma forma compreensível para os leigos. Os cientistas
estudam o aquecimento global de maneira fragmentada e acabam tendo dificuldade
de desenvolver uma visão geral do fenômeno.