São Paulo, quinta-feira, 06 de setembro de 2001

Outras idéias - Alexandre Milagres

Parar de fumar é, na verdade, um reencontro com o próprio eu, perdido em algum lugar do passado, aquele que sonhava acordado, ansiava por descobertas e não temia o desconhecido

O cigarro e a dra. Gro

 

A norueguesa Gro Brundtland assumiu, em 1998, a diretoria geral da Organização Mundial da Saúde (OMS). Ato contínuo, elegeu o tabagismo como a principal doença a receber a atenção daquela agência das Nações Unidas.
Escolha correta? Acertadíssima, diante dos números nefastos que a fumaceira descontrolada tem produzido, para o desespero dos que cuidam da saúde da espécie humana e dos que têm preocupações ecológicas. Aliás, não por acaso, a dra. Gro foi a presidente da Rio Eco 92. Os 4 milhões de mortes anuais pelo fumo falam por si sós.
A indicação da OMS simbolizava o fim da era da inocência. Todo o glamour, o charme e os sinais subliminares de masculinidade e coragem dissiparam-se ante as declarações da mulher que dirige a saúde pública do mundo.
Passamos, com mais intensidade do que nunca, a conviver com dados, estatísticas e descobertas assombrosas sobre os poderes demoníacos das substâncias tóxicas. A própria indústria fumageira, mesmo que por orientação de seus advogados, engrossa o caldo de perversidades provocadas pelo tabaco, confirmando o que negara por 50 anos -que o fumo vicia e, para espanto dos sensíveis, que os governos têm benefícios econômico-financeiros com as mortes precoces de seus habitantes fumantes, pois economizam em tratamentos de idosos e aposentadorias.
Em meio a todo esse, apesar de tudo, saudável burburinho, encontram-se os fumantes, uma imensa legião espalhada mundo a fora. Estes acreditaram, em algum momento longínquo de suas adolescências, na indestrutibilidade do corpo ou no poder de suas decisões inquebrantáveis, em que o abandono do fumo seria questão de tempo.
Os fumantes, esses atuais discriminados, que já se viam soterrados por todas as políticas corretas vigentes, reduzindo a ingestão de açúcar, sal e gorduras, que tinham há muito aposentado seus estilingues e destruído as suas gaiolas, passaram a respeitar credos e minorias, a beber moderadamente, a odiar motoserras, a valorizar seus votos, a praticar esportes à exaustão e a eliminar definitivamente qualquer traço de gordura corporal e a considerar falta grave a possibilidade de possuir um par de mamas de tamanho inadequado para o design atual, passam agora a sentir-se estímulo-forçados a abandonar seus isqueiros, fósforos, cinzeiros e que tais. Até para provar sua capacidade de amar-se, amar ao outro, ao planeta e à vida, enfim.
Em nenhuma hipótese, poderíamos discordar das diretrizes, sábias diretrizes, da dra. Gro Brundtland e da OMS. Entretanto é necessário recomendar calma ao pessoal que está tomando coragem de entrar na trilha que leva à recuperação da saúde física. Voltar a gostar e cuidar bem da gente mesmo é uma tarefa necessária e urgente, porém delicada. Merecemos tratamento carinhoso no momento em que vivemos.
Parar de fumar é, na verdade, um reencontro com o próprio eu, perdido em algum lugar do passado, aquele que sonhava acordado, ansiava por descobertas e não temia o desconhecido. Entrar no processo, carregando culpas imaginárias, ansiedades, medos injustificáveis e autocobranças pode justificar o fato de tão poucos alcançarem o objetivo.
Viver sem tabaco é uma experiência formidável para os que chegam lá. O sentimento de perda, inerente ao abandono de um companheiro de tantos anos, tem a contrapartida da satisfação de vencer um monumental desafio, na qual se confirma que, quando a alma não é pequena, tudo vale a pena.

ALEXANDRE MILAGRES é médico pneumologista, especialista em tratamento de dependência em nicotina e responsável pelo site Fumar pra Quê, Meninos e Meninas? (www.cigarro.med.br)